sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Patrimônio cultural...

      Segundo o Art. 216 da Constituição Federal de 1988, o patrimônio cultural brasileiro se compõe de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.                Com efeito, a amplitude da definição constitucional sobre patrimônio cultural deixa a possibilidade de salvaguardar as motivações identitárias, históricas e culturais que levam os grupos sociais a agir em  prol da defesa, valorização e promoção dos bens patrimoniais que lhes são caros e sobressaem como signos portadores de significados representativos de fatos, personagens, lugares, saberes, técnicas e artefatos. Mas nem sempre foi assim.

  De fato, faz-se mister reconhecer que desde 1937 o Brasil vem desenvolvendo uma política de identificação e preservação de obras de arte, monumentos e demais bens de natureza material através do instituto legal do tombamento, até pouco tempo o único instrumento de preservação do patrimônio cultural brasileiro de que o poder público dispunha. Embora válido, eficiente e atual, quando aplicado a edificações, obras de arte e outros bens dessa natureza, o tombamento é inaplicável e mesmo inadequado à preservação de manifestações culturais com vínculo maior a sua natureza imaterial e simbólica. Na década de 1970, os critérios da política de patrimônio cultural passaram a ser repensados e revistos de forma sistemática, até desembocar em propostas que incorporassem esses aspectos simbólicos e demais referências culturais, quer viriam a “deslocar o foco dos bens – que em geral se impõem por sua monumentalidade ... - para a dinâmica de atribuição de sentidos e valores” (Londres, 2000: 60-61).
 No decorrer dos anos, houve uma grande resistência por parte de conselheiros do antigo SPHAN, antecessor do IPHAN, quanto à extensão do título de patrimônio cultural a bens que não àqueles dotados de monumentalidade e valor artístico, que desembocou em 1984 na grande mobilização da sociedade, dos poderes constituídos e da imprensa baiana, de grupos prós e contra, em torno do primeiro tombamento de um terreiro de candomblé, o Casa Branca, em Salvador na Bahia (Velho, 2006). Essa realidade começou a mudar mais efetivamente com as novas significações incorporadas ao conceito de patrimônio cultural na CF-1988, alargamento que permitiu algumas inovações históricas interessantes. No bojo desse processo, em agosto de 2000, foi editado o Decreto nº. 3.551/2000 que instituiu o Registro dos Bens  Culturais de Natureza Imaterial e criou o “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”, e dividiu os registros dos bens em quatro livros: Saberes, Celebrações, Formas de Expressão e Livro dos Lugares.
    Atendendo a esse espírito da nova política cultural, desde 2002, por exemplo, várias manifestações culturais passaram a ser inscritas nos referidos Livros de Registro e declaradas como patrimônio cultural imaterial, tais como: o Talian, dialeto vêneto-rio grandense falado pelos imigrantes italianos nas serras gaúchas e oeste de Santa Catarina; o ofício da fabricação artesanal de panelas de barro pelas paneleiras de Goiabeiras-ES; o Jongo, expressão musical coreográfica trazida para o Rio de Janeiro pelos escravos angolanos e que deu base ao samba de partido alto e a festa do Círio de Nazaré em Belém-PA. A importância dessa nova forma de registro cultural chegou a níveis internacionais com o reconhecimento pela ONU da arte kusiwa dos Wajãpi, povo indígena do Amapá, e o samba-de-roda do Recôncavo baiano como exemplos de Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
Sendo assim, o conceito de patrimônio cultural, lato sensu, aponta para dois aspectos que lhe são funcionais e que poderíamos considerar como indissociáveis: por um lado, seu uso se aplica à materialidade ou à tangibilidade dos bens, obras e artefatos a que se refere; por outro, temos um aspecto imaterial, simbólico, baseado nas significações vividas e praticadas pelas pessoas que compõem um grupo social. Por fim, o terceiro aspecto a ser realçado no conceito de patrimônio cultural são as vivências históricas e a idéia mesma do do que seja história - concebida na escala diacrônica de modo distinto seja por uma comunidade negra-quilombola seja por uma comunidade indígena guarani-mbyá, por exemplo -, de que as manifestações culturais são testemunhas e que deverão sempre ser destacadas na definição do conceito.

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